O Brasil que a gente produz – Indústria de Queijos

11/09/2020   14h19

 

O queijo entrou de fininho na França. Passou na surdina, dentro da mala, rumo ao Concurso Mundial de Queijos, o principal do mundo, realizado a cada dois anos no Vale do Loire. A peça produzida na fazenda São Bento Capela Velha saiu com a medalha de prata na categoria massa prensada a base de leite cru na disputa de 2017. Essa é a força do queijo Canastra.

 

A iguaria carrega o nome do lugar onde surgiu. Cravada no sudoeste de Minas Gerais, com o pico beirando 1.500 metros de altitude, a Serra da Canastra tem no queijo e na nascente do Rio São Francisco seus filhos mais famosos. Picante, intenso, perfeitamente equilibrado entre maciez e tenacidade, o queijo Canastra é um patrimônio nacional.

 

Literalmente. Desde 2008 é considerado um Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O tombamento protege a tradição do modo de fabricação e preserva a receita original. Queijo, para ser Canastra, só leva leite cru, coalho, pingo (soro residual do processo de secagem de levas anteriores do queijo) e sal. Em tese.

 

Na prática, muito queijo diz ser Canastra mas não é. A fama do queijo artesanal da Canastra fez com que o nome extrapolasse o território. Então, não é difícil achar falsificações Brasil a fora, feitas em Minas Gerais ou em outros estados. É aí que a indicação geográfica sobe a serra.

 

Desde 2012, o queijo Canastra é protegido pela Indicação de Procedência, concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O reconhecimento é uma maneira de prestigiar o saber fazer dos produtores e a notoriedade da região. Também é um jeito de garantir a origem aos consumidores.

 

Para ser um Canastra original o queijo precisa ter sido produzido em um dos municípios que compõem a área delimitada na Indicação de Procedência: Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas, Tapiraí e Vargem Bonita. Distribuídas em 7.452 km², as sete cidades concentram mais de 800 queijeiros, que produzem 600 toneladas de queijo artesanal por ano. Seguindo as regras de produção, qualquer um deles pode chamar seu queijo de Canastra.

 

A UNIÃO FAZ A FORÇA – No entanto, para levar a estampa da marca coletiva Região do Queijo da Canastra, administrada pela Associação dos Produtores de Queijo Canastra (Aprocan), o produtor deve ser associado. Atualmente, a entidade conta com cerca de 60 afiliados.

 

A conquista da Indicação Geográfica é apenas uma das consequências da mobilização dos produtores. A consolidação do associativismo trouxe mais informação para a região, com capacitações e treinamentos periódicos, concursos, cooperação com outros países e a promoção do turismo na região com a formação da Rota do Queijo Canastra.

 

O gosto pelo queijo, combinado às atrações naturais da Serra da Canastra, tem atraído mais turistas para a região. Só entre 2016 e 2017, o fluxo de visitantes aumentou 54%, chegando a quase 90 mil pessoas.

 

LUTA PELA CURA

 

Reza a lenda que descobriram as qualidades excepcionais do Canastra curado sem querer. A fabricação do queijo remonta ao século XIX, durante a colonização por portugueses que buscavam ouro e prata nas montanhas. Desde sempre gente de fora encomendava a iguaria. Como a Serra da Canastra é distante dos principais centros urbanos, o queijo saía fresco da fazenda e era levado em baús de palha transportados por cavalos.

 

O tempo até chegar nas cidades era o tempo de cura. Hoje, um queijo precisa descansar por pelo menos 22 dias para ser considerado curado. A história quem conta é João Carlos Leite – pouca gente tem um nome tão apropriado para ser o presidente da Aprocan. “O queijo muda completamente. Quanto mais curado, mais saboroso”, explica Leite, também dono da fazenda Roça da Cidade. Ele é a quarta geração de queijeiros da família.

 

Recentemente, o sabor único do queijo amadurecido quase se perdeu. Com a fama do Canastra, veio o aumento da demanda e a proliferação de atravessadores, comerciantes intermediários entre o queijeiro e o consumidor. Muitos produtores passaram a vender o queijo ainda fresco, a cerca de R$ 12 o quilo. A conquista da Indicação de Procedência é também um marco na luta pela cura do queijo. Envelhecido no tempo certo, o quilo do queijo salta para algo entre R$ 30 e R$ 40.

 

“Resgatamos uma tradição de 40 anos porque teve uma época que era só queijo fresco, e a gente não gostava. Não sei por que inventaram essa coisa de queijo fresco. Quem pede esse não conhece o queijo de verdade. Hoje, a gente só mexe com queijo curado”, conta Zé Mario, 70 anos, um dos produtores mais antigos da região.

 

“Temos trabalhado para convencer os produtores de como isso é importante e economicamente mais interessante. Queijo fresco qualquer um vende. Canastra, não”, esclarece Leite. Parece estranho, mas, em Minas Gerais, consome-se essencialmente os queijos fresco e meia cura. A maior demanda por peças curadas vem de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Dos 800 produtores, acredita-se que apenas 10% façam o Canastra curado.

 

Assim como o vinho, alguns queijos se valorizam com o passar do tempo. O Canastra Real, reservado por até um ano, se assemelha bastante ao parmesão – que também é protegido por uma indicação geográfica na Itália. Uma peça pesa mais de 5 quilos e custa – pasmem – até R$ 600.

 

ENCONTRO DE GERAÇÕES

 

Economicamente, os benefícios da indicação geográfica são claros. A notoriedade de uma região é preservada, os produtores são melhor remunerados, a IG promove o associativismo e a cooperação entre empresários, o consumidor leva para casa uma história, mais que um produto.

 

No entanto, há outra consequência ainda mais interessante. Quando o Canastra deixou de ser visto como mundano para se tornar algo especial, a história das propriedades que fabricam o queijo ganhou outros contornos. Novas gerações, que saíram da roça para estudar em cidades grandes, estão voltando para a serra e assumindo os negócios da família.

 

No caso de Guilherme Henrique Silva, do queijo medalha de prata no concurso mundial lá do início desta reportagem, a conversa vai além. A marca Capela Velha nasceu quando ele e o irmão, Alexandre Silva, agrônomos formados na Universidade Federal de Lavras, resolveram resgatar a tradição queijeira, que havia cessado com a morte do avô, Francisco Leite da Costa, o Chico Heitor. O espólio do patriarca inclui a fazenda, hoje remodelada para atender as normas de produção, e algo mais precioso: como fazer o queijo.

 

A receita é igual. A diferença entre as gerações, no entanto, é indiscutível. Chico Heitor vendia o queijo fresco. “Meu avô, se estivesse vivo, nunca admitiria que fazer queijo curado é melhor negócio do que vender o queijo fresco, baratinho. Sem sobra de dúvidas, é”, explica Guilherme.

 

A decisão de mirar no queijo curado foi influenciada pela mulher de Guilherme, Valéria, que também trabalha na Aprocan e acompanha as discussões sobre queijo artesanal de perto. Deu tão certo que Guilherme deixou de lado as consultorias ambientais para trabalhar em tempo integral pela Capela Velha.

 

FAZENDO HISTÓRIA

 

Hugo Faria Leite tem 25 anos e um diploma de arquitetura conquistado em graduação sanduíche na PUC de Belo Horizonte e na Universidade de Turim, na Itália. O ano que passou na Europa foi mais esclarecedor do que ele poderia imaginar. “Só quando saí do Brasil e vi de longe o trabalho que o meu pai estava fazendo que me dei conta do valor que tudo isso tem. Tive vontade de voltar”, conta.

 

Na Itália, Hugo viu de perto como produtos tradicionais são protegidos por leis de origem e, sobretudo, pelas pessoas. Então, a batalha para preservar o Canastra fez todo sentido. Depois de um ano de formado, Hugo é o responsável operacional da Roça da Cidade, marca fundada pelo pai, João Carlos Leite.

 

Com sangue novo, vêm novas ideias de negócio e a utilização de ferramentas modernas para divulgar o trabalho da fazenda, como redes sociais, eventos de degustação do queijo harmonizados com vinho, venda sólida por e-commerce. “Lá fora, tudo está feito. Aqui temos muito a conquistar. Tem muita coisa a fazer, temos a nossa história para contar”, diz.

 

PITACO FRANCÊS

 

Duas coisas são levadas muito a sério na França: vinho e queijo. A legislação de proteção à origem desses ícones da identidade francesa é referência para o mundo. Apenas na França, há 56 tipos de queijo protegidos por normas de origem. Juntos, movimentam um mercado bilionário.

 

A expertise ajudou a Canastra a se organizar para qualificar a produção e correr atrás da indicação geográfica, prática secular na Europa. Entre 2002 e 2010, uma ou duas vezes por ano, uma comitiva de especialistas franceses desembarcava em São Roque de Minas, centro da produção do queijo, para dar treinamento e dividir conhecimento. Não só sobre técnicas de produção, mas associativismo, implementação de boas práticas e, finalmente, sobre indicação geográfica. “Houve um trabalho de aculturamento para que os produtores entendessem melhor o que isso significa”, afirma João Carlos Leite.

 

A influência francesa fez bastante diferença. A partir da cooperação, nasceu a Aprocan e a militância pela proteção do queijo Canastra aumentou. Isso porque as legislações estadual e federal sobre queijo artesanal são confusas, conflitantes e, em muitos casos, proibitivas. Até recentemente, a venda do queijo artesanal fora do estado de produção era ilegal por falta de harmonização dos critérios de inspeção sanitária entre as unidades da federação. Além de ser alvo de pirataria, o Canastra também era, tecnicamente falando, contrabandeado Brasil afora.

 

Apenas recentemente, com a criação do Selo Arte, que ainda pende de regulamentação, a venda de alimentos artesanais foi permitida nacionalmente.

 

TECNOLOGIA CONTRA OS PIRATAS

 

O retorno à tradição vem de mãos dadas com a briga pelo fim da pirataria. Sem o conhecimento do que é uma indicação geográfica e o que faz um queijo ser um Canastra original, muita gente acaba consumindo falsos Canastras. O jeito que a Aprocan encontrou para enfrentar as fraudes leva em conta a conscientização do público e o investimento em tecnologia.

 

Um grupo de 23 produtores passou 2018 testando etiquetas de caseína, feitas a base da proteína do leite, que não apenas asseguram a origem e a autenticidade do queijo, mas permitem seu rastreamento. A expectativa é que, a partir de 2019, ao menos metade de toda a produção de queijo Canastra leve a etiqueta, importada da França.

 

Fonte: Agência CNI – Portal da Indústria

Postagem Jô Lopes