O Brasil que a gente produz – A força da farinha

6/10/2020   16h12

 

Uarini está na boca do povo. E em tudo quanto é mercado de Manaus, de Tefé. Se bobear, está em todos os lugares na imensidão do Amazonas. É obrigatória. Se faltar, tem briga. É democrática. Vai na receita de chef e no prato popular. Acompanha carne, frango, peixe. Vai bem com açaí. De tão boa, faz as vezes de moeda. Troca-se Uarini por filé de pescado. Uarini é como chamam uma farinha. Mas antes de tudo, Uarini é um lugar, é a casa de 13 mil pessoas, é o berço de uma tradição. Cravada no meio da floresta amazônica, Uarini quer se emancipar pela indicação geográfica.

 

O jeito mais fácil – e viável – de chegar lá é de barco, partindo de Tefé, principal cidade da região central do estado. A viagem leva duas horas navegando pelo indômito leito do Rio Amazonas, em lancha rápida. Então, como um local tão isolado produz algo tão famoso?

 

EMBOLADA – O manejo da mandioca é tão antigo entre diferentes povos da Amazônia que ninguém sabe precisar quando descobriram o jeito de fazer o tubérculo virar uma farinha em forma de ovinhas. Como toda tradição, o conhecimento foi repassado de geração em geração. Em Uarini, a técnica chegou à perfeição.

 

Dentro da reserva Mamirauá, a maior área de preservação ambiental do Brasil, cerca de 2 mil agricultores vivem do cultivo da mandioca. O processo de transformação em farinha é todo artesanal. Depois de colhida, a mandioca fica imersa em água de dois a três dias até amolecer, fermentar e descascar. Por isso, ela é um tipo de farinha d’água.

 

A secagem da massa é feita em palhas trançadas ou prensas e, então, peneirada. A diferença entre a farinha de Uarini e as demais começa com o que acontece depois. Na casa de farinha, a massa vai para um boleador, que gira lentamente para formar grãos arredondados. Eles seguem para a torra num tacho de ferro e passam pela peneira pela última vez. Naturalmente amarela, crocante, saborosa e granulada, a Farinha de Uarini não tem par no mundo.

 

Sabor não tem fronteira nem conhece distância. Os quase 600 quilômetros que separam o município de Uarini e Manaus, capital do estado, em nada impediram que a iguaria se convertesse em um ativo popular da rica cozinha local.

 

Esse é o lado bom. O lado ruim da fama é que a farinha é copiada sem pudor. Uarini não quer correr o risco de se tornar um sinônimo de farinha. Uarini quer ser conhecida por ter criado algo único, maior que um derivado de mandioca. Uarini quer que a sua farinha, singular como é, conte a sua história.

 

A conversa sobre indicação geográfica chegou à região por intermédio da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A ideia era que o reconhecimento de Indicação de Procedência, além de proteger o território e garantir a autenticidade da farinha ao consumidor, seria um elemento de união produtiva e aumento da qualidade de vida dos agricultores que vivem da farinha.

 

UNIDOS DE UARINI – União é uma palavra chave para Uarini. Mesmo após os primeiros movimentos associativos na região, iniciados em 2007, a competição entre os produtores da farinha derrubava o preço do produto ao ponto de inviabilizar a remuneração adequada para os agricultores. “Antigamente, cada hora a farinha tinha um preço. Produzia num dia e no outro a farinha já estava ainda mais barata. Hoje, não, é um preço tabelado, a gente tem essa garantia”, recorda o agricultor Maximiliano Amaral.

 

Marca coletiva Ribeirinha trouxe empoderamento para produtores e desenvolvimento para a região, diz Raimundo Moreira, da Amurmam

A figura de atravessadores, compradores intermediários entre os produtores e pontos de venda final, contribuia para a crise dos preços. O quilo da farinha chegou a bater em R$ 0,30. A ideia de abrir uma central da farinha para ampliar a renda dos produtores veio da Associação de Moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá Antônio Martins (Amurmam).

“Quisemos tirar a farinha da mão dos atravessadores para que os próprios produtores tivessem controle e poder sobre os negócios”, explica Raimundo Rodrigues Moreira, diretor-geral da Amurmam. Assim nascia a marca coletiva Ribeirinha, que revende a farinha produzida por 68 associados.

Com o apoio da FAS e recursos do Fundo Amazônia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o primeiro passo foi construir um galpão de trabalho. Os próprios produtores ergueram o prédio, usado para centralizar o recebimento da farinha dos associados e o processo de embalagem – única etapa de produção que conta com o auxílio de máquina industrial. A marca foi lançada oficialmente no mercado em julho de 2018. A reorganização da produção elevou não apenas a qualidade da farinha: o preço foi para R$ 5 o quilo. Só para atender Manaus, são embarcadas 5 toneladas por mês.

Marcos Tinoco acredita que valorização da farinha de Uarini garantirá sustento das famílias de maneira digna

PROCEDÊNCIA É VALOR – A questão da Indicação de Procedência é uma esperança de maior reconhecimento da região. O pedido foi depositado pela Amurmam junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em 2017, onde está sob análise.

 

“A IG vai reconhecer o que a gente faz. Antes a gente não era reconhecido mas também não valorizava o que a gente mesmo faz. Vai nos ajudar a receber um preço digno, que dê para sustentar a nossa família”, acredita Marcos Tinoco da Silva, um dos associados.

 

A marca foi lançada oficialmente no mercado em julho de 2018

Se preparar para receber a Indicação de Procedência elevou o nível de exigências para os produtores. As casas de farinha precisam ser padronizadas e seguir normas de controle sanitário. O uso de agrotóxicos na produção da mandioca é expressamente proibido. A associação pretende fazer o controle de qualidade trimestralmente, enviando amostras para análise laboratorial em Santa Catarina.

 

O BEM ESTÁ FEITO – As mudanças encontram resistência em alguns agricultores, mas são defendidas como meios de proteção à qualidade e, especialmente, à sustentabilidade do cultivo, uma vez que Uarini fica no meio de uma reserva ambiental e ostenta, com orgulho, índices de desmatamento praticamente nulos.

 

“A produção diminuiu para garantir a qualidade. Quem fazia 5kg por dia está fazendo 2kg. Não adianta ter quantidade. Produzir menos, com mais qualidade, aumenta o nosso poder econômico. Com isso, tem menos impacto ambiental, menos derrubada e os agricultores conseguem tirar o sustento do ano inteiro com apenas uma quadra de roça”, reitera Raimundo Moreira. A meta é usar o reconhecimento da IG para conquistar o Brasil e, quem sabe, sair para o mundo via exportação.

 

Independentemente se Uarini obtiver a Indicação de Procedência ou não, os ganhos já estão postos no dia a dia da comunidade. É como o otimismo de Sebastião Vieira de Souza: “bom é você gostar do que faz. Há 25 anos, faço farinha e acho que vai tudo melhorar.”

 

Fonte: Agência CNI – Portal da Indústria – Série especial O Brasil que a gente produz

Postagem: JoLopes FIERN